*Paulo Sergio João
Em 5 de outubro passado, nossa Constituição Federal comemorou 36 anos de existência. Sempre é tempo de refletir sobre a intenção do constituinte e de que forma o andar da carruagem das relações coletivas transformou este desejo para entender como chegamos até aqui, em especial no que diz respeito ao direito fundamental de exercício do direito à liberdade sindical e o modo pelo qual impactou as negociações coletivas.
É inegável que a proposta constituinte em relação aos direitos sociais e, em especial, ao direito sindical, foi de romper com a estrutura anterior, de Estado intervencionista, e estabelecer um sistema garantidor e sólido para permitir a proteção dos indivíduos e de seus direitos fundamentais.
Foi assim que o artigo 8º da Constituição assegurou no primeiro tempo da frase de seu caput que “é livre a associação profissional ou sindical”, dando sinais de que estaria respeitando a Convenção n. 87 da OIT que trata da liberdade sindical. Se tivéssemos ficado apenas nesta afirmação seria o suficiente para a garantia do direito fundamental consignado pela Conferência de Filadelfia que define os fins e objetivos da Organização Internacional do Trabalho, afirmando “a liberdade de expressão e de associação é uma condição indispensável ao progresso ininterrupto”. Nada mais bastaria.
Todavia, ao contrário do que se espera de uma constituição, o constituinte passou a regulamentar o comportamento desejado para a efetivação da liberdade sindical, com a proibição da intervenção do Estado, proibição de lei fixando condições para o reconhecimento de sindicato e referindo-se, até, ao registro em órgão competente.
Sindicalismo de cartório
O constituinte tergiversou relativamente à realidade ideológica dos deputados integrantes da própria constituinte, formada por correntes políticas diversas e representativas de pluralidade incontestável de opiniões e, indo mais além do que deveria espelhar uma efetiva constituição, reconhecedora de direitos fundamentais, fixou, de modo surpreendente, que a liberdade sindical deveria respeitar a unicidade de representação, criando um paradoxo de afirmações, somente aceitas por aqueles que pretendiam manter o sindicalismo de cartório.
Arnaldo Sussekind observa que “o inciso II do art. 8º da Constituição de 1988 violou o conceito de liberdade sindical consagrado pelo direito comparado, com reflexo nos tratados internacionais, ao proibir a existência de mais de uma associação sindical, em qualquer nível (sindicato, federação e confederação) para a representação do mesmo grupo de trabalhadores ou de empresários, na mesma área geográfica” (Direito constitucional do trabalho, Rio de Janeiro. Renovar, 1999, p. 336).
Para que não houvesse dúvidas, o constituinte cuidou ainda de afirmar a liberdade de filiação sindical, a obrigatoriedade do sindicato (único) de participar das negociações coletivas e, também, assegurou a criação de mais fonte de custeio por meio de assembleia dos associados.
A previsão constitucional de abstenção do Estado deu verdadeiro impulso à criação de novos sindicatos, com desmembramento das chamadas categorias em outros sindicatos que se diziam mais representativos, com verdadeira pluralidade de categorias no mesmo setor de atividade econômica. Assessorar a formação de sindicatos passou a ser uma profissão especializada e o atrativo nesta nova atividade era a possibilidade de usufruir da contribuição sindical compulsória.
As centrais sindicais, sem personalidade sindical, foram autorizadas por lei, permitindo aos dirigentes sindicais a criação de entidades de caráter ideológico custeadas por parte da contribuição sindical destinada ao Ministério do Trabalho.
Ocorre, entretanto, que os sindicatos acabaram morrendo do próprio veneno pois, entusiasmados com a riqueza fácil das contribuições sindicais de toda ordem, abandonaram, com raras exceções, o que seria o papel fundamental da representação orgânica junto aos representados que, se já não tinham muito apego ao sindicalismo, afastaram-se cada vez mais. Os sindicatos passaram a ser assunto de interesse exclusivo dos dirigentes sindicais para fins políticos.
A reforma trabalhista causou grande impacto na organização sindical que, a partir de então, com a eliminação da contribuição sindical compulsória, sofreu com a redução brutal de arrecadação. De fato, muitos sindicatos se mostraram fragilizados sem fonte de custeio e um baixíssimo índice de sindicalização, obrigando o Ministério do Trabalho, por meio da Portaria nº 3.472, de 4/10/2023, desnecessária e inconstitucional, criar procedimento para fusão e incorporação de sindicatos. Esse abandono de sindicatos novos que se diziam representativos de categorias, muitas inventadas, é a confissão clara de que o sindicato de categoria é uma confissão deslavada de que categoria é uma ficção e que tem objetivo separatista e excludente, contrariando os princípios que movem o sindicalismo orgânico.
Então, pode-se afirmar que a assembleia constituinte, ao homenagear o modelo do sindicato de categoria, único, perdeu uma grande oportunidade de aprovar a Convenção 87 da OIT e de transformar a organização sindical, permitindo a criação, pelos trabalhadores, de autênticas formas de manifestação coletiva, com personalidade e legitimidade de atuação, investidas em sindicatos ou não, capazes de se expressar de forma legítima em nome de trabalhadores e não de categorias, estas cada vez mais difícil de serem identificadas, diante de um enquadramento sindical que representa clara intervenção do Estado na organização sindical.
Relativamente às negociações coletivas, nas quais os sindicatos de trabalhadores e de empresários são protagonistas fundamentais, com raras exceções houve evolução na conquista de garantias sólidas para a evolução dos direitos transformadores das relações trabalhistas. Muitas negociações limitam-se a negociar o passado e à reprodução de texto legal sem criatividade, gerando um círculo vicioso de conflitos.
Chegamos até aqui, nos 36 anos de vida sindical e da Constituição de 1988, sem nada mudar quanto à liberdade sindical e com a preservação do sindicalismo do século passado e, se mantido o sistema vigente, as conquistas vindouras dependerão exclusivamente do legislador.
Enquanto não se rompe com a unicidade sindical, talvez, a negociação coletiva por comissões legítimas, no local de trabalho, seja uma modalidade de adaptação das reivindicações trabalhistas de empregados e de empregadores que, ajustados à dinâmica e dimensões das empresas, possam contribuir para o conteúdo mais objetivo das normas negociadas e com o alargamento plúrimo dos critérios de representação.
*Paulo Sergio João é advogado e Prof. de Direito do Trabalho da PUC-SP.
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